domingo, 14 de setembro de 2008

Eu, zumbi



Quem acha que vida de zumbi é só andar por aí atrás de carne fresca, está muito enganado...


Eu, Zumbi é um texto de Giovanni Coio, amigo e colaborador da equipe do Mangue Negro. Nessa crónica ele nos conta como é a vida de um zumbi no mangue...



Eu, Zumbi
por Giovanni Coio, um dia de filmagem para o Mangue Negro.



Chegue cedo.
Esteja preparado.

Oito horas da manhã, um lindo dia de sol, temperatura amena, sábado.
Todos se divertem. Uns na praia, uns nos bares, uns em casa.
Saio de casa levando uma calça, camisa, sapatos, que não precise mais. Tudo velho, como solicitado.

Moro a menos de quinhentos meros da casa de R. Ele havia me convidado para ser participante de um dia de filmagem de seu novo filme. Eu já conhecia o projeto e tinha visto as primeiras tomadas. Claro que topei, - vai ser legal.

Do lado de fora do ateliê de R. numa área coberta, juntei-me à equipe que iria trabalhar na cena daquele dia. Eram maquiadores, formados por R. para preparar os Zumbis, mais os assistentes que davam apoio para a parte de figurino, rango, água. Duas câmeras, Mauricio (Pizza) e Thiago.

Em um semi-círculo de cadeiras, várias pessoas eram preparadas, sentadas, recebiam as primeiras camadas de verniz, como uma linha de produção, eram dezesseis Zumbis. Sentei-me numa cadeira e também recebi verniz na cara e nas mãos. Duas, três, quatro, cinco mãos tocam meu rosto, pescoço e mãos. Minha pele começou a repuxar, os olhos a arder, as narinas sendo invadidas pelo cheiro ácido. É um processo lento, constrói-se camada em cima de camada. Tem que ser convincente. E tem que resistir ao Mangue. Aplicam látex, silicone, trapos. Ali, na cadeira, imóvel, olhos fechados, ouço o burburinho do trabalho que não para.

Pausa para respirar. Cola isso, põe aquilo. Próteses preparadas por R. são habilmente utilizadas para produzir personagens horrendos, assustadores, asquerosos.

Passam-se quatro horas. Uma tortura. Na mesma posição, não pode mexer, não pode respirar, nem pensar.

Após estarmos prontos, fomos para um espaço desenvolver algumas caracterizações de comportamento zumbizístico. Como arrastar a pernas, como andar para um lado olhando para outro, como fazer sons de Zumbi. Como atacar em bando, como revirar os olhos. Em pouco tempo formávamos uma roda tenebrosa, estava muito bom, lindamente podres.

O lanche. Arroz de carreteiro feito por Dona Dalva (mãe de R.).

Todos alimentados, para o Mangue, nosso cenário. Fica perto, menos de um quilômetro, subindo na direção contrária à do mar. O material "material" vai de carro. Fios, lâmpadas, maquiagem, uns baldes de gosma, de sangue... rebatedores, água, mais rango ( a coisa vai demorar ). O material "humano", nós Zumbis e outros assistentes, vai a pé. Uma procissão como essa causaria espanto em qualquer lugar do mundo. Até aqui. Atraiu olhares curiosos e assustados por onde passamos.

- O que é isso? perguntavam.

Mangue, lindo Mangue.

No final da estrada que acompanha o Rio Perocão, junto ao Mangue, tivemos acolhida numa casa, onde havia um ancoradouro que consertava barcos, que nos propiciava acesso ao local desejado.
Nas entranhas.

Finalmente soubemos de que se tratavam os estranhos baldes cheios de coisas, fomos cobertos por gosma, muita gosma, para ficarmos com a bela aparência de Zumbis do Mangue. Recém-feita, estava quentinha, dava certo conforto, cobertos por uma camada de polvilho cozido.???

Devidamente caracterizados, fomos entrando Mangue adentro, atolando o pé na lama, tropeçando em galhos submersos, subindo pelas raízes.

A cena se desenvolve durante a fuga de Júlio (O personagem deve ser devorado hoje) , devemos ataca-lo quando passar por nós.

Mergulhamos na água fria, escura. Para algumas tomadas, um a um, fomos saindo calmamente de dentro d’agua, filmados em close, depois, várias seqüências de perseguição, pulando por galhos, metade do corpo mergulhado, aquela gosma esfriando, a fome chegando, o corpo já doendo de cansaço, frio, já estávamos naquele ambiente há cinco horas. E era um tal de "mais uma, só para garantir", "agora mais um mergulho, vamos".

O céu, escurecendo, o sol, indo para trás das montanhas. A luz esvaia-se deixando as trevas aos poucos dominar tudo, quando ouvimos um "conseguimos a terminamos a cena". Viva!!
Nessa água começamos a nos limpar. Muito difícil, conseguimos tirar apenas a parte mais exterior, a lama dos sapatos, dos cabelos, das roupas, alguma parte da gosma.

Como moro perto, fui para casa de bicicleta, cheguei e fui logo para o chuveiro, fiquei mais de meia hora esfregando com um monte de coisas, saí, sequei-me e passei então a limpar parte da maquiagem mais forte com algodão embebido em óleo de amêndoas.

O resto da maquiagem foi saindo aos poucos, nos travesseiros, lençóis, após uns dias, praticamente não havia mais nada. Nem de maquiagem nem de mim. Não agüentei o tranco e fiquei de cama, a coluna doía como nunca.

Foi quando decidimos que eu não poderia mais fazer aquilo, a "vida" de zumbi é muito dura para mim, então, me tornei o fotógrafo escondido da produção.


Rodrigo filmando na pedra.
Foto de Giovanni Coio

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